terça-feira, 11 de novembro de 2008

- 7º Conto: Antes do baile verde -

O rancho azul e branco desfilava com seus
passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte
de peruca prateada em forma de pirâmide, os
cachos desabados na testa, a cauda do vestido de
cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro
do bumbo fez uma profunda reverência diante
das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu
com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a
capa encharcada de suor.

– Ele gostou de você – disse a jovem, voltando-
se para a mulher que ainda aplaudia. – O cumprimento
foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.

– Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo
menos na minha opinião. E já deve estar chegando,
ficou de me pegar às dez na esquina. Se me
atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não
sai mais nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até
a mesa-de-cabeceira. O quarto estava revolvido
como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado
caixas e gavetas.

– Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é
fogo... Tenha paciência, mas você vai me ajudar
um pouquinho.

– Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os
joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas
também verdes.

– Acabei o quê! falta pregar tudo isso ainda,
olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando com as mãos
o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha
trazia um crisântemo de papel crepom vermelho.
Sentou-se ao lado da moça.
– O Raimundo já deve estar chegando, ele fica
uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos,
hoje quero ver todos.
– Tem tempo, sossega – atalhou a jovem. Afastou
os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou
o abajur que tombou na mesinha. – Não sei como
fui me atrasar desse jeito.
– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa?
Tudo, menos perder o desfile!
– E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-
o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida,
levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas
formando uma constelação desordenada.
Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente
tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote,
fixando-a com pequenos movimentos circulares.

– Mas se tiver que pregar as lantejoulas em
todo o saiote...

– Já começou a queixação? Achei que dava
tempo e agora não posso largar a coisa pela metade,
vê se entende! Você ajudando vai num instante,
já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem
disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?
– Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim
verde, você está parecendo uma alcachofra, tão
gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a
cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão
na face afogueada.

– Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É
um baile verde, as fantasias têm que ser verdes,
tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos,
não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta
mais da metade, Lu!
– Estou sem óculos, não enxergo direito sem
os óculos.
– Não faz mal – disse a jovem, limpando no
lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo.
– Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém
vai reparar, vai ter gente à beça. O que está
me endoidando é este calor, não agüento mais, tenho
a impressão de que estou me derretendo, você
não sente? Calor bárbaro!
A mulher tentou prender o crisântemo que
resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou
o tom de voz.
– Estive lá.
– E daí?
– Ele está morrendo.

Um carro passou na rua, buzinando freneticamente.
Alguns meninos puseram-se a cantar aos
gritos, o compasso marcado pelas batidas numa
frigideira: A coroa do rei não é de ouro nem de
prata...

– Parece que estou num forno – gemeu a jovem,
dilatando as narinas porejadas de suor. – Se
soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.
– Mais leve do que isso? Você está quase nua,
Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque
aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica.
Imagine você então...
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma
lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-
a cair na pequena constelação que ia armando
na barra do saiote e ficou raspando pensativamente
um pingo ressequido de cola que lhe caíra no
joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se
em nenhum. Falou num tom sombrio:

– Você acha, Lu?
– Acha o quê?
– Que ele está morrendo?
– Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um
monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele
não passa desta noite.
– Mas você já se enganou uma vez, lembra?
Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E
no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.
– Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou
num muxoxo os lábios pintados de vermelho-
violeta. – E depois, eu não disse não senhora
que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi
o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei
da porta, nem precisei entrar para ver que ele está
morrendo.
– Mas quando fui lá ele estava dormindo tão
calmo, Lu.
– Aquilo não é sono. É outra coisa.
Afastando bruscamente o saiote aberto nos
joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou
a garrafa de uísque e procurou um copo em
meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o
debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo
cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando
os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-
se à preta.

– Quer?
– Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia.
A jovem despejou mais uísque no copo.
– Minha pintura não está derretendo? Veja se
o verde dos olhos não borrou... Nunca transpirei
tanto, sinto o sangue ferver.
– Você está bebendo demais. E nessa correria...
Também não sei por que essa invenção de saiote
bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas
no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com
o pensamento no Raimundo lá na esquina...
– Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo
a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse
cara não pode esperar um pouco?
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão
deliciada a música de um bloco que passava já
longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando...acabou chorando...

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